Maria Zaíra Turchi e Eugênia Fraietta
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É sabido do folclore borgiano que, quando o conto "A aproximação a Almotásim"
surgiu em 1940, na revista Sur, foi tomado realmente como
uma resenha de um romance de autor indiano. O fato, além de confirmar
a determinação da leitura na definição do gênero do texto, conforme sempre
afirmou Borges, ilustra a figura do leitor como elemento previsto na ficção
borgiana, como elemento inserido na busca do narrador-leitor-comentador que
resenha o fictício romance de Mir Bahadur, A aproximação a Almotásim.
O leitor nesse conto acompanha o caminho percorrido por um outro leitor, o
que teve de alguma forma acesso ao romance de Bahadur e tece uma resenha
crítica apresentando desde a citação sumária da fortuna crítica do romance e
seu percurso editorial até o resumo do enredo, antevendo o argumento geral,
comentando criticamente e estabelecendo novos precursores. O narrador aparece
no conto não como um mero contador de histórias, mas sobretudo como um
questionador, um inquiridor e um comentador de leituras feitas, ou seja, um
duplo do leitor:
Então Bahadur publicou uma edição ilustrada que intitulou The conversation
with the man called Al-Um’tásin e que subtitulou magnificamente: A game
with shifting mirrors (um jogo com espelhos que se desalocam). [...] Tenho-a à
vista; não consegui obter a primeira, que pressinto muito superior (BORGES,
1989a, p. 22).
Durante a leitura, o leitor acaba inserido em outra busca, além da busca do
narrador-comentador pelo sentido do romance: a busca do personagem do romance
comentado pelo homem chamado Almotásim. O leitor, então, projeta-se
dupla e simultaneamente no conto: ele é mais um leitor na infinita cadeia de
leitores borgianos, que buscam o conhecimento mediante a leitura e o comentário,
e é o leitor de um romance, que lhe chega já resumido e bastante mediado,
no qual vai acompanhar a peregrinação de um jovem estudante de direito em
busca de Almotásim.
De um lado, o leitor é previsto na estrutura do conto e existe como uma de
suas personagens; de outro, cabe ao leitor a existência do conto, uma vez que
sua forma depende de sua leitura. O texto de Borges assume verdadeiramente a
qualidade de um Proteu, podendo tomar diversas formas, uma vez que a leitura
pode ser um ato criador, não menos que a escritura. Os leitores são seus elementos
e seus criadores, são lidos e leem, mas também empreendem na leitura
uma busca em vários sentidos que os leva de indagadores a indagados.
A trajetória do protagonista "visível" do romance de Bahadur, A aproximação
a Almotásim, está resumida, e de certa forma explicada, na segunda parte do
conto, quando o narrador, após citar a fortuna crítica e o percurso editorial do
romance, descreve o enredo da obra que resenha. A história contada já chega ao
leitor bastante alterada; além de passar pelo narrador, que suprime e ressalta
passagens segundo seu critério de avaliação do que é ou não pertinente ou decisivo
para sua análise, ele ainda decide por essa seleção a partir de uma edição
do romance, ilustrada e posterior a uma primeira que ele julga superior: "Autoriza-
me a isso um apêndice, que resume a diferença fundamental entre a versão
primitiva de 1932 e a de 1934. Antes de examiná-la – e de discuti-la – convém
que eu indique rapidamente o curso geral da obra" (BORGES, 1989a, p. 22).
No cenário percorrido pelo estudante, desde o motim entre mulçumanos e
hindus até o encontro com Almotásim, vários elementos simbólicos destacam-se
na elaboração de um espaço e tempo maravilhosos, próprios do conto como
forma simples na qual a irrealidade é tomada como real. O conto, por sua vez,
"enfrenta abertamente o universo e o absorve, o universo conserva, pelo contrário,
apesar dessa transformação, sua mobilidade, sua generalidade e – o que lhe
dá a característica de ser novo de cada vez – sua pluralidade" (JOLLES, 1976,
p. 194-195).
Esse universo será suporte para a busca do jovem estudante pelo homem
chamado Almotásim, o que, segundo Davi Arrigucci Jr. (1987), constitui uma
espécie de travessia de formação por meio dos mistérios do mundo até a manifestação
do sentido.
O jovem, antes de principiar sua busca, perdendo-se na Índia, tem suas certezas
ideológico-religiosas abaladas, quando se vê capaz de matar, mas não consegue
avaliar quem tem razão, mulçumano ou idólatra, e conclui que um ladrão
muito odiado deve ser merecedor de algum tipo de admiração. Seu critério moral
fica evidentemente relativizado e é essa transformação inicial que lhe permite
perceber, em um homem detestável que encontra em seu caminho, "uma ternura,
uma exaltação, um silêncio" (BORGES, 1989a, p. 24). Por meio desse homem
vil e incapaz de emanações virtuosas, o estudante intui um interlocutor mais
complexo e elevado e deduz que ali estariam apenas seus reflexos. Decide, então,
dar início à busca do homem de quem procede essa claridade: "Já o argumento
geral se entrevê: a busca insaciável de uma alma através dos tênues reflexos
que esta deixou em outras" (BORGES, 1989a, p. 24).
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Neste ponto, abre-se uma das buscas do conto que já fora pontuada por alguns
detalhes "aflitivos"; melhor dizendo, detalhes de instigantes múltiplos significados,
como quando o narrador nos apresenta o protagonista: "Seu protagonista
visível – nunca se nos diz seu nome – é estudante de direito em Bombaim"
(BORGES, 1989a, p. 22). Enquanto sua visibilidade não significa propriamente
identidade, uma vez que seu nome nunca é revelado, o fato de o narrador tê-lo
qualificado como "visível" nos remete imediatamente à possibilidade da existência
de um protagonista invisível, possibilidade que é, sem hesitação, preenchida
por Almotásim, personagem nomeado desde o início, porém nunca visto.
O trecho "À medida que os homens interrogados conheceram mais de perto
Almotásim, sua porção divina é maior, mas se acredita que são simples espelhos"
(BORGES, 1989a, p. 24) prepara o leitor, de certa forma, para o desfecho
da história de Bahadur, e "conhecer de perto" pressupõe visibilidade e concretude;
no entanto, o que se tem de Almotásim continua sendo imagens refletidas nas
pessoas que creem nele.
O narrador arrisca a ideia que lhe parece mais "estimulante" acerca da identidade
de Almotásim: "a conjectura de que também o Todo-Poderoso está em
busca de Alguém, e esse Alguém de Alguém superior (ou simplesmente imprescindível
e igual) e assim até o Fim – ou melhor, o Sem-Fim – do Tempo, ou em
forma cíclica" (BORGES, 1989a, p. 25-26). Ainda segundo o narrador, na edição
que lhe serve de fonte, o autor lhe atribui o emblema de Deus, o que significaria
uma perda do seu caráter alegórico. Com efeito, a descrição do local onde o estudante
enfim encontra Almotásim nos traz uma imagem divina:
Ao cabo dos anos, o estudante chega a uma galeria "em cujo fundo há uma
porta e uma esteira barata com muitas contas e um resplendor". O estudante
bate
palmas uma e duas vezes e pergunta por Almotásim. Uma voz de homem –
a incrível voz de Almotásim – convida-o a passar. O estudante abre a cortina e
avança. Nesse ponto o romance acaba (BORGES, 1989a, p. 25).
Na reunião de todos os rastros ou indícios, Almotásim pode ser qualquer um
e todos ao mesmo tempo, livreiro persa, santo, cristo ou o homem que o estudante
pensa haver matado. A magnificação de Almotásim o conduz a nada ser,
e ser tudo. A divinização de Almotásim o coloca em qualquer lugar, em todos os
lugares, em nenhum lugar e até mesmo naquele lugar onde se deu início a busca
do estudante. Cada nova versão de Almotásim exclui e acrescenta elementos
a sua identidade e redefine-o sem completá-lo. O reconhecimento completo de
uma possível e verdadeira identidade de Almotásim não se dá, não se declara
quem, o que ou como realmente seja Almotásim. A busca do estudante parece
ter fim quando ele avança na direção da incrível voz; no entanto, o sentido completo
dessa busca, a decifração do enigma de Almotásim não nos é revelada. A
pergunta acerca de quem seja Almotásim é formulada durante todo o conto e a
resposta se dispersa e se multiplica na última cena, já que o que resta e está
reservado ao leitor – até como provocação – é conjecturar a respeito desse encontro
recolhendo e reinterpretando – infinitamente – pistas deixadas ao longo
do relato que podem, inclusive, identificar buscado e buscador como na nota do
narrador. Aliás, esta última possibilidade adquire um significado bastante amplo
se pensarmos em outros encontros borgianos em que o encontro com o outro
é, na verdade, o encontro consigo mesmo1. A solução, nessa perspectiva, parece
estar na ambiguidade: o eu é o outro, não sendo absolutamente. Mas as respostas
são somente conjecturas.
O que cada leitor fará com essa cena é de natureza ilimitada e imprevisível;
entretanto, um sentido talvez permaneça, aquele que está exatamente, segundo
Borges (1989b, p. 12, tradução nossa), na "iminência de uma revelação, que não
se produz"2e que "é, quiçá, o fato estético".
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A outra busca é aquela empreendida pelo narrador, ou melhor, por um leitor
anterior aos leitores atuais, que comenta o romance de Bahadur e que também
realiza uma tarefa de decifração – a decifração do enigma da leitura.
O narrador debruça-se sobre o livro e sobre o enigma que a sua leitura lhe
oferece e essa conduta decifradora torna-se a aventura da ficção borgiana. Na
verdade, nada acontece em termos de ação romanesca; a peregrinação do jovem
estudante nos é relatada por um narrador que está seguro e imobilizado pela
leitura em sua biblioteca. A ação romanesca, digamos, externa, tradicional não
existe; em seu lugar temos a aventura do leitor, a aventura intelectual da leitura
do romance de Bahadur e sua decifração, a ação intelectual, "parada". A leitura
aparece como o equivalente da ação e "assim acaba por preencher o lugar vazio
da busca propriamente dita, deslocando o romanesco para o espaço mental e
imaginário da decifração" (ARRIGUCCI JR., 1987, p. 230).
Assim que o narrador finaliza o resumo do romance de Bahadur com o encontro
enigmático do estudante com Almotásim, ele encaminha-se para a última
parte do conto, em que tenta a análise crítica propriamente dita do romance, o
que se dá em torno da construção da imagem de Almotásim. Segundo o narrador,
Bahadur falhou, pois Almotásim não passaria de um fantasma, de uma
desordem de superlativos insípidos carecendo de caráter real. Na versão do romance
de 1934, as falhas teriam aumentado: Almotásim é o emblema de Deus,
como já foi dito, e alguns pormenores sobre seus rastros insinuam um Deus
unitário que se acomoda às desigualdades humanas. O narrador prefere a interpretação
da etimologia do nome Almotásim que significa "o procurador de am-
paro" (BORGES, 1989a, p. 26). Em seguida, faz um comentário a respeito dos
percursores do romance e chega a estabelecer "com toda humildade" (BORGES,
1989, p. 27) um percursor, Isaac Luria, cuja ideia era de que "o espírito de um
antepassado ou mestre pode entrar na alma de um infeliz, para confortá-lo ou
instrui-lo" (BORGES, 1989, p. 27). Seu último comentário não deixa de ficar
também na "iminência de uma revelação". Em nota de rodapé, ele apresenta um
precursor anteriormente citado – "Colóquio dos pássaros": "essas e outras ambíguas
analogias podem significar a identidade do buscado e do buscador; também
podem significar que este influi naquele. Outro capítulo insinua que Almotásin
é o "hindu" que o estudante crê ter matado" (BORGES, 1989a, p. 27). Em
mais uma possibilidade de esclarecimento, o que se vê é o desdobramento de
mistérios na sugestão da identidade do buscado e do buscador e na insinuação
perturbadora de que o buscador tenha, sem saber, aniquilado o buscado.
À primeira vista, esse comentário crítico parece, conforme observou Genette
(1972, p. 121) acerca da produção crítica de Borges, "possuído por um estranho
demônio de operações associativas". No entanto, toda a atividade realizada pelo
narrador-comentador tece uma infinita rede de relações entre obras e ecos de
obras em outras tantas obras no espaço sem fronteiras da leitura. Neste conto,
como a exemplo da totalidade da obra de Borges, essa rede infinita de relações
é o resultado de "uma inabalável curiosidade intelectual, pressupondo uma
idêntica atitude inquisitiva diante dos livros e do universo" (ARRIGUCCI JR.,
1987, p. 229), da busca pelo conhecimento por meio da decifração da leitura
como um enigma de múltiplas respostas e soluções concomitantes.
Essa conduta narrativa, essa forma de enredar o conteúdo, de forjar a matéria
temática, enfim, de realizar o mythos tem raízes profundas na estrutura da
forma simples do mito sagrado de pergunta e resposta. No mito sagrado:
Uma resposta chega então ao interrogados; e essa resposta é de tal natureza
que não é possível formular outra pergunta; a pergunta anula-se no mesmo instante
em que é formulada; a resposta é decisiva. [...] O homem pede ao universo
e aos seus fenômenos que se lhe tornem conhecidos; recebe então uma resposta,
recebe-a como responso, isto é, em palavras que vêm ao encontro das suas.
O universo e seus fenômenos fazem-se conhecer (JOLLES, 1976, p. 87-88).
Já em Borges, essa estrutura dá origem a uma narrativa que, com efeito,
parte de uma pergunta – a busca pelo conhecimento, pela decifração do enigma
da leitura, pelo sentido dos livros – mas desemboca numa resposta multiplicada
que, ao que tudo indica, revitaliza a pergunta em vez de respondê-la e, consequentemente,
esvaziá-la, anulá-la. Borges não só está atento ao fato de que a
certeza esfacelaria o mito, como também ao despropósito do absoluto, do definitivo
no tempo e contexto de sua narrativa.
Mais uma vez o sentido que não se completa, a revelação que não se cumpre
e a resposta potencializada aparecem como o nó da leitura borgiana e, como
num moto-perpétuo; o mythos que é oriundo desse narrador-inquiridor, é, ao
mesmo tempo, aquele que lhe dá origem. A própria natureza do narrador aparece
potencializada em seu sisifismo.
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Fica bem claro que realmente o resultado da leitura como origem da ficção é
uma demoníaca rede de associações. Assim como Almotásim tem sua imagem
dispersada e multiplicada durante toda a peregrinação do jovem estudante, mas
também isolada e una no momento enigmático do encontro, a literatura surge, a
partir da conduta do narrador, como o resultado da leitura. Ressurge alastrada e
multiplicada em incontáveis livros de histórias recontadas e recriadas, mas, ao
mesmo tempo, abarcável em um único livro, um livro concebido como um centro
de incontáveis relações, como uma "reserva de formas" (GENETTE, 1972, p. 129),
formas que esperam para ser preenchidas pela leitura que ressuscita o objeto
livro, até então morto, e que produz o fato estético. A poética da criação literária
perde seu sentido em Borges para ser substituída por uma poética da leitura.
Chega-se imediatamente a uma outra conclusão: a autoria tradicional é abalada
nessa perspectiva da leitura como origem da ficção. Quem, de fato, em "A
aproximação a Almotásim", exerce a "sagrada" autoria clássica? Quem existe no
conto, de fato, como autor de algo? Esses questionamentos levam à superação
da ideia de autor como indivíduo autônomo. O narrador do conto, visto como
representação de autor, é a redefinição borgiana de autor como um grande coordenador
do engenho alheio, uma memória individual do coletivo. Daí também
o questionamento acerca da onisciência absoluta da tradição do século XIX. O
narrador borgiano mantém, de fato, uma atitude demiúrgica afastada, mas não
exerce aquela onisciência privilegiada, e sim uma onisciência particularizada,
relativa. Nesse caso, só ele teve acesso a esse romance do autor indiano Bahadur,
A aproximação a Almotásim, e a partir disso arma conjecturas sobre essa
obra e sobre sua relação com outras. Ele conta o que quer e como quer, pois
quem lê pode fazê-lo de várias formas. Assim, o narrador cria uma duplicidade
de quem leu e constrói possibilidades acerca disso.
"Coordenador do engenho alheio" ou "memória individual do coletivo" resumem,
num olhar mais atento sobre a conduta literária de Borges, uma ambição
antiga da literatura que ganha novos e dinâmicos significados em nossa época,
a "ambição de representar a multiplicidade das relações, em ato e em potencialidade"
(CALVINO, 1993, p. 127); uma ambição que se alinha à velocidade desmesurada
com que o nosso mundo cria e destrói crenças, homens e conhecimento:
A excessiva ambição de propósitos pode ser reprovada em muitos campos da
atividade humana, mas não na literatura. A literatura só pode viver se se propõe
a objetivos desmesurados, até mesmo para além de suas possibilidades de
realização (CALVINO, 1993, p. 127).
É esse grande coordenador do engenho alheio, que lida com a enorme incerteza
de um universo – cósmico ou caótico? – expandido incontrolável e implacavelmente
neste século, que vemos representado na literatura borgiana, aceitando
o grande desafio de "saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos
códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo" (CALVINO, 1993,
p. 127). Com ele acreditamos nessa concepção de literatura como reserva inesgotável
de formas a serem preenchidas e, por isso, infinito e demoníaco sistema
de associações. Talvez o único capaz de abarcar o inabarcável.
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