segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

As ruínas circulares



Jorge Luis Borges,

Ninguém o viu desembarcar na noite unânime, ninguém viu a canoa de bambu sumindo no lodo sagrado, mas dias depois ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que sua pátria era uma das infinitas aldeias que estão a montante, no flanco violento da montanha, onde o idioma zend não foi contaminado pelo grego e a lepra é pouco freqüente. A verdade é que o homem cinza beijou o lodo, galgou o barranco da margem sem afastar (provavelmente, sem sentir) o capim-navalha que lhe dilacerava a carne e se arrastou, atônito e ensangüentado, até o recito circular coroado por um tigre ou cavalo de pedra, que um dia foi da cor do fogo e agora é da cor da cinza. Essa arena é um templo que antigos incêndios devoraram, que a selva do pântano profanou e cujo deus não recebe a honra dos homens. O forasteiro estendeu-se sob o pedestal. Foi despertado pelo sol alto. Comprovou sem espanto que as feridas tinham cicatrizado; fechou os olhos pálidos e adormeceu, não por fraqueza da carne, mas por determinação da vontade. Sabia que aquele templo era o lugar exigido por seu invencível propósito; sabia que as árvores incessantes não haviam conseguido estrangular, rio abaixo, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que sua imediata obrigação era sonhar. Por volta da meia-noite foi despertado pelo grito inconsolável de um pássaro. Rastros de pés descalços, alguns figos e um cântaro lhe permitiram entender que os homens da região tinham espiado com respeito seu sono e solicitavam sua proteção ou temiam sua magia. Sentiu frio do medo e buscou na muralha dilapidada um nicho sepulcral e se cobriu com folhas desconhecidas.
O propósito que o guiava não era impossível,ainda que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Esse projeto mágico havia esgotado completamente o espaço de sua alma; se alguém tivesse lhe perguntado seu próprio nome ou qualquer traço de sua vida anterior, não teria dado com a resposta. Era para ele conveniente o templo desabitado e destroçado, porque era um mínimo de mundo visível; a proximidade dos lenhadores também, pois estes se encarregavam de suprir suas necessidades frugais.O arroz e as frutas de seu tributo eram alimento suficiente para seu corpo, consagrado à única tarefa de sonhar.


No início, os sonhos eram caóticos; pouco depois, foram de natureza dialética. O forasteiro sonhava consigo mesmo no centro de um anfiteatro circular que era de algum modo o templo incendiado: nuvens de alunos taciturnos exauriam a arquibancada; as caras dos últimos pendiam a muitos séculos de distância e a uma altura estelar, mas eram inteiramente precisas. O homem ditava-lhes lições de anatomia, de cosmografia, de magia: os rostos escutavam com ansiedade e procuravam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que redimiria um deles de sua condição de vã aparência e o introduziria no mundo real. Durante o sonho e a vigília, o homem considerava as respostas de seus fantasmas, não se deixava engambelar pelos impostores, adivinhava em certas perplexidades uma inteligência crescente. Buscava uma alma que merecesse participar do universo.


Depois de nove ou dez noites compreendeu com alguma amargura que nada podia esperar daqueles alunos que aceitavam com passividade sua doutrina, e sim daqueles que arriscavam, ás vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e afeição, não podiam ascender a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram tributárias do sonho, agora não velava senão um par de horas durante o amanhecer) dispensou para sempre o vasto colégio ilusório e ficou apenas com um aluno. Era um rapaz taciturno, melancólico, ás vezes indócil, de traços afilados que repetiam os de seu sonhador. A brusca eliminação de seus condiscípulos não o desconcertou por muito tempo; depois de umas poucas aulas particulares, maravilhou o mestre. Contudo, sobreveio a catástrofe. Certo dia, o homem emergiu do sonho como de um deserto viscoso, olhou a luz vã da tarde que de imediato confundiu com a aurora e compreendeu que não sonhara. Toda a noite e o dia seguinte, a intolerável lucidez da insônia se abateu sobre ele. Quis explorar a selva, extenuar-se, mal conseguiu, em meio à cicuta, rajadas de um sonho débil, fugazmente mescladas à visão de qualidade rudimentar: imprestáveis. Quis consagrar o colégio e , mal tinha articulado umas breves palavras de exortação, este se deformou, desfazendo-se. Na quase perpétua vigília, lágrimas de ira queimavam-lhe os olhos envelhecidos.


Compreendeu que o empenho de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que os sonhos são feitos é o mais árduo que um varão pode empreender, embora penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árduo que tecer uma corda de areia ou que amoldar o vento sem rosto. Compreendeu que um fracasso inicial era inevitável. Jurou esquecer a enorme alucinação que a princípio o desviara e buscou outro método de trabalho. Antes de exercitá-lo, dedicou um mês à reposição das forças que o delírio desperdiçara. Abandonou toda premeditação de sonhar e quase ato contínuo conseguiu dormir um pedaço razoável do dia. As raras vezes que sonhou durante esse período, não reparou nos sonhos. Para reatar a tarefa, esperou que o disco da lua ficasse perfeito. Em seguida, à tarde purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetários, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e adormeceu. Quase imediatamente, sonhou com um coração que palpitava.


Sonhou-o ativo, quente, secreto, do tamanho de um punho fechado, de cor grená na penumbra de um corpo humano ainda sem rosto: sonhou-o com minucioso amor, durante catorze lúcidas noites. Cada noite, percebia-o com maior evidência. Não o tocava: limitava-se a testemunhar sua presença, a observá-lo, talvez a corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e muitos ângulos. Na décima quarta noite tocou a artéria pulmonar com o indicador e, em seguida, o coração todo por fora e por dentro. O exame o satisfez. Deliberadamente não sonhou durante uma noite: depois voltou ao coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Antes de um ano chegou ao esqueleto, ás pálpebras. O cabelo inumerável foi, quem sabe, a tarefa mais difícil. Sonhou um homem inteiro, um oco, mas este não se incorporava nem falava nem podia abrir os olhos. Noite após noite, o homem o sonhava adormecido.


Nas cosmogonias gnósticas, os demiurgos moldam um Adão vermelho que não consegue ficar de pé; tão inábil e rude e elementar feito esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado. Uma tarde, o homem quase destruiu por completo sua obra, mas arrependeu-se. (Melhor teria sido que a tivesse destruído.) Esgotados os votos aos numes da terra e do rio, lançou-se aos pés da efígie que talvez fosse um tigre, talvez um potro, e implorou seu desconhecido socorro. Durante aquele crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva, trêmula: não era um atroz bastardo de tigre e proto, mas a uma só vez essa duas criaturas veementes e também um touro, uma rosa, uma tempestade. Esse múltiplo deus revelou-lhe que seu nome terreno era Fogo, que naquele templo circular (e noutros iguais) haviam lhe rendido sacrifícios e culto, e que magicamente animaria o fantasma sonhado, de modo que todas as criaturas, exceto o próprio Fogo e o sonhador, o tomassem por um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que, uma vez instruído nos ritos, seria enviado ao outro templo destroçado, cujas pirâmides persistem a jusante, para que alguma voz o glorificasse naquele edifico deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou.


O mago executou as ordens. Consagrou um prazo (que finalmente abrangeu dois anos) a lhe desvelar os arcanos do universo e do culto do fogo. Intimamente, sentia separar-se dele. Com o pretexto da necessidade pedagógica, todo dia aumentava as horas dedicadas ao sonho. Também refez o ombro direito, quem sabe deficiente. Às vezes, inquietava-o uma impressão de que tudo aquilo já acontecera... Em geral, seus dias eram felizes: ao fechar os olhos, pensava: “Agora estarei com meu filho”. Ou, mais raramente: “O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for”.
Gradualmente, foi habituando-o à realidade. Uma vez lhe ordenou que pusesse uma bandeira num ponto distante. No dia seguinte, a bandeira flamejava no cume. Ensaiou outros experimentos análogos, cada vez mais ousados. Compreendeu com certa amargura que seu filho estava pronto para nascer – e talvez já impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez e o enviou ao outro templo, cujos destroços alvejaram rio acima, a muitas léguas de inextricável selva e pântano. Antes (para que ele não soubesse nunca que era um fantasma, para que se julgasse um homem como os outros) lhe infundiu o esquecimento total de seus anos de aprendizagem.
Sua vitória e sua paz ficaram empanadas pelo fastio. Nos crepúsculos da tarde e da madrugada, prosternava-se perante a figura de pedra, talvez imaginando que seu filho irreal executasse idênticos ritos, noutras ruínas circulares, a jusante; de noite não sonhava, ou sonhava como fazem todos os homens. Percebia com certa palidez os sonos e as formas do universo: o filho ausente se nutria dessas diminuições de sua alam. O propósito de sua vida fora cumprido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. Depois de algum tempo que certos narradores de sua história preferem computar em anos e outros em lustros, foi despertado por dois remadores à meia-noite: não pode ver o rosto deles, mas lhe falaram de um homem mágico num templo do Norte, capaz de pisar no fogo sem se queimar. O mago recordou bruscamente as palavras do deus. Recordou que, de todas as criaturas que compõem o globo, o Fogo era a única que sabia que seu filho era um fantasma. Essa recordação, apaziguadora de início, acabou por atormentá-lo. Temeu que seu filho meditasse sobre esse privilégio anormal e descobrisse de algum modo sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, será a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! A tudo para interessar os filhos que procriou (que permitiu) numa mera confusão ou felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensado entranha por entranha e traço por traço, em mil e uma noites secretas.


O término de suas cavilações foi repentino, mas alguns sinais o prenunciaram. Primeiro (no fim de uma longa seca) uma nuvem remota sobre um morro, leve como um pássaro; depois, rumo ao Sul, o céu que era da cor da gengiva dos leopardos; logo as fumaceiras que enferrujam o metal das noites; por fim, a fuga pânica das feras. Porque se repetiu o acontecido havia séculos. As ruínas do santuário do deus do Fogo foram destruídas pelo fogo. Num amanhecer sem pássaros o mago viu o incêndio concêntrico agarrar-se aos muros. Por um instante, pensou se refugiar nas águas, mas depois compreendeu que a morte vinha coroar sua velhice e absolvê-lo dos seus trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo. Elas não morderam sua carne; antes o acariciaram, inundando-o sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.
[i] Extraído de Ficções. Companhia Das Letras, 2007, p. 46

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