segunda-feira, 20 de maio de 2019

Operando aberturas sensíveis: poética-poiese

Em termos bastante genéricos dizemos que há duas maneiras de invocar "destruiçoes necessárias": a do poeta, que fala em nome de uma potencia criadora, apto a reverter todas as ordens e todas as representaçoes, para afirmar a Diferença no estado de revoluçao permanente do eterno retorno; e a do político, que se preocupa, antes de tudo, em negar o que "difere" para conservar, prolongar uma ordem estabelecida na história ou para estabelecer uma ordem histórica que já solicita no mundo as formas de sua representaçao. (DELEUZE)

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http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812010000100012

Descartes (1999) vence o solipsismo de sua dúvida com o chao duro da razao sem corpo, pura abstraçao auto-referente a pairar em um vazio que será preenchido por suas eternas idéias geométricas e matemáticas perfeitas. Nesta aventura de vencer as ilusoes de sarcásticos demônios zombeteiros, abandona a espada flamejante do arcanjo e a troca por uma lâmina de frias luzes com o fio mais fino que o da navalha de Ockan e passa a partir as coisas e colocá-las em seus devidos lugares. Para além do empirismo caótico e intuitivo dos aristotélicos e sua vassoura de cerdas desaprumadas Bacon (1999), agora seria possível dar "chumbo a imaginaçao", pregando-a a promessa do Método Moderno. Para tanto, era necessário nao apenas delimitar o campo empírico, dado e estrito, como também era preciso erigir um método totalmente lúcido, pura razao pura de formas perfeitas e simétricas tal qual os paralelogramas da inteligencia divina agostiniana. E como a imagem do Deus de Santo Agostinho fomos feitos: pura intelecçao, entendimento, apenas consciencia sem corpo seríamos em essencia. Definida nossa racional natureza racional, basta entao definir nossos demais atributos e anulá-los de algum modo: fluídos animais, afetos e imaginaçao deveriam ser iluminados pelo inteligível: "E nao se deve inventar ou imaginar o que a natureza faz ou produz, mas descobri-lo" (BACON, 1999, p.109). Assim, mirando para o empírico diante de nós, nossa alma pode ativamente extrair o inteligível campo próprio ao conhecimento.
Enquanto a sensaçao é o efeito da pressao dos objetos exteriores sobre os órgaos dos sentidos, os quais por sua vez levam suas impressoes até o cérebro, a imaginaçao é apenas uma capacidade de fazer permanecer estas aparencias dos objetos em nossa mente, sendo a nomenclatura latina para o que os gregos chamavam fantasia (HOBBES, 1999). Trata-se, portanto, do delírio do entendimento, posto que "[...] o objeto é uma coisa, e a imagem ou ilusao outra" (HOBBES, 1999, p. 32). É apenas a razao que permite a sanidade dos sentidos, fazendo-os ir além das aparencias até as essencias gerais e eternas.
Por outro lado, as certezas buscadas também podem limitar a complexidade da vida, uma vez que elas nos impoem certa sobriedade para com o mundo. E, diante de suas artimanhas, aceitamos a sua solidez. Há, porém, um pulsar que escapa aos códigos e normas prescritas, já que relança os sentidos a novas produçoes e descobertas. Um encontro entre séries divergentes invade a nossa suposta orientaçao, ao tirarmos o ser do amornamento ilusório de que o mundo nos pertence, ou de que a distinçao entre o pensar e o sentir seria necessária. Nesse ponto, o sentido, embriagado de sua atualidade, encharca-se com novas tramas e cores, e se joga no embate múltiplo entre afeto, razao e fragmento inventado. Com isso, abrimos mao de um método previsível e feito por procedimentos universalizantes, para nos tornarmos efeitos de superfície e experimentarmos as complexidades da linguagem e de suas proliferaçoes.
Para Deleuze (2006a, p.10), a antiga profundidade se desdobrou na superfície, e o "devir ilimitado se desenvolve agora inteiramente nesta largura revirada". Nao importa, pois, o que vem antes, ou o que gera o ser, mas a sua meta-estabilidade, o desequilíbrio transformado em reviravolta de simulacros. Reviramos, entao, as causas ou a previsibilidade das coisas, para nos recobrirmos com novos agenciamentos, tramas inventadas entre elementos múltiplos que se desdobram e invadem o saber e o nao saber, numa narrativa feita de mistérios e aberturas ao intempestivo movimento da vida, tornada maquinaçao e aventura. 
Nesse movimento inusitado, compomos brechas, entre o saber e o non-sense, tal qual uma trama inventada que precisa de uma nova configuraçao. E, mais do que buscar as respostas, deixamos que as perguntas se contaminem com o problemático entorno daquilo que nao se sabe, daquilo que ainda nao tem existencia, mas que insiste, persiste, no jogo duplo dos sentidos inventados. A previsibilidade e o procedimento perdem a importância, já que o método se enlaça a trama dos sentidos misturados, naquilo que o porvir define a cada encontro em contaminaçao com o outro.
Desse modo, ao pensarmos no inteligível, que era concebido enquanto puramente racional e abstrato, podemos agora considerar sua constituiçao híbrida e paradoxal, que o torna também sensível: a abstraçao age no mundo e sua açao nao é apenas concreta, como também está para além do racional, envolvendo os afetos e as afecçoes do corpo. Do mesmo modo, o que chamamos de sensível, e que era considerado a pura sensaçao, concretude variável no tempo, passa a ser também inteligível, a pensar e a problematizar junto ao corpo que também é mente, mentindo mundos verdadeiros vários, construídos por estas forças para além da divisao entre entendimento e sensaçao, epistemologia e ontologia.
Em meio a um plano composto de elementos heterogeneos, o pensar se contamina com o sentir, ambos tornam-se cúmplices de um estranhamento repentino, que os convocam a uma abertura e a uma nova imbricaçao. Nesse devaneio inventado, o corpo encontra o incorpóreo, como se desejasse a sua própria abstraçao, levada a mais alta potencia, roubada de seu antigo vigor, transformada em vertigem sutil. O pensar se enreda com o Fora, nesse plano Impessoal e múltiplo, que carrega, em si, um repertório de sentidos misturados, no tempo de Aion, dos Acontecimentos que provocam tensao e ruptura.
Assim, nao se trata da especulaçao de um mundo interno que sobe a superfície, tampouco buscamos o descobrimento de uma verdade em essencia. Ao cartografar, tentamos produzir os deslizes do eu, bem como o desmanche daquilo que já fazia sentido, para que, dessa falha, seja possível convocar a perfuraçao de mundos e o seu próprio estremecimento. Nesse aspecto, cartografamos as desmesuras da paisagem e escrevemos aquilo que transborda o sentir e o pensar, tal qual um devaneio que encontra uma casa e se transforma em abstraçao colocada em sonho. Conforme Foucault (2006, p.268), na escrita, nao se trata da amarraçao do sujeito em uma linguagem, "trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve nao pára de desaparecer". O sensível se envolve com o conhecer, há um entrelaçamento de idéias e açoes. Pesquisamos, entao, aquilo que nos convoca e atormenta, e tornamo-nos cúmplices de suas audácias e desatinos.
Dessa finitude e estranheza, a noçao de obra também se transforma, uma vez que a marca do escritor, ou do pesquisador, nasce da singularidade de sua ausencia. Escrevemos, ou pesquisamos, no limite daquilo que nao sabemos, ou do que já nao somos mais. Vivemos o tormento de transitar entre o sonho e a aventura da maquinaçao de sentidos. E, nesse jogo caótico, pensamento e sensaçao se imbricam numa estória embrulhada, ao fazerem coexistir as séries divergentes e ao diferir enredos entrelaçados. O método pode, entao, compor uma dobra das composiçoes da existencia, ao costurar os nós entre afeto, cogniçao e abertura cósmica.
Logo, a criaçao, a invençao, fatores antes relegados ao ostracismo epistemico, passam a fazer parte das operaçoes de construçao do conhecimento e constituiçao de intervençoes. Intervir, aqui, implica a interferencia, o corte, a ruptura que convém ao corpo, ao relançá-lo as aventuras de experimentaçao do pensamento. Nesse intrépido estilo cartográfico, podemos compor as narrativas dos encontros inventados e saborear as delícias de um recomeço tornado origem menor, genese inventada, sujeito infame. Por meio de inquietaçoes e desconhecimentos, abrimos o corpo para a sua fissura, para aquilo que o torna estranhamento e dúvida. No limite das ausencias inventadas, escrevemos ou compomos a descoberta do mundo, perante sua insaciável solidao e ternura.
Assim, a ficçao passa a ser o fundamento do documental, a criaçao do dado e o delírio do bom senso: "O delírio está no fundo do bom senso, razao pela qual o bom senso sempre é segundo" (DELEUZE, 1988, p. 363). Perante o dado tornado menor, razao segunda, podemos sofrer com o intempestivo do acaso, tal qual um lance de dados que convoca a variaçao. Devemos, portanto, fazer delirar as coisas, aos modos, subvertendo seus regimes e provocando clinamens que abrem os fluxos.
Em termos bastante genéricos dizemos que há duas maneiras de invocar "destruiçoes necessárias": a do poeta, que fala em nome de uma potencia criadora, apto a reverter todas as ordens e todas as representaçoes, para afirmar a Diferença no estado de revoluçao permanente do eterno retorno; e a do político, que se preocupa, antes de tudo, em negar o que "difere" para conservar, prolongar uma ordem estabelecida na história ou para estabelecer uma ordem histórica que já solicita no mundo as formas de sua representaçao. (DELEUZE, 1988, p. 101)
Nessa luta, temos a chance de fazer voltar todo o delírio que se enlaça aos avessos da história, na tentativa de contá-la de múltiplos modos, para além da previsibilidade das descobertas. Operamos a ética de um retorno que volta os possíveis a sua mais elevada potencia, para relançar a força criadora de afirmaçao de um porvir. Uma ética condicional supoe a chama dos enredos inventados de múltiplos modos e transforma o encontro entre narrativa e poética. Assim, o imperativo do como se pode tomar conta do corpo: viva como se cada instante voltasse eternamente, elevando a mais alta potencia o desejo de criaçao, e tornando o tempo a molecularizaçao da existencia replicada em configuraçoes diversas. Optamos por uma abertura que supoe a ética-estética da existencia, daquilo que já nao somos mais, do que estamos nos tornando, tal qual uma invençao de mundos estranhos e abertos a fluxos nômades. O desafio consiste em viver como se o delírio do verbo voltasse eternamente, ao fazer estremecer as relaçoes entre o falar e o sentir.    
Desse modo, vemos delinear-se a poética como operaçao potencializadora dos possíveis na cartografia. Partindo de "[...] uma idéia de poesia sempre excessiva" (DELEUZE, 1988, p.457), vamos pensar a poética como a poiética do desmedido, daquilo que transborda os sistemas de aceitabilidade e provoca novas intuiçoes que tomam ao corpo de assalto em novas imagens, novos gestos. Assim, o corpo encontra o incorpóreo, jogo extremo de superfícies ao avesso que se enlaçam e convocam a forma a se distorcer. Uma chama envolve a crítica e provoca açoes no pensamento, tornado passagem, envolto no excesso e na sensaçao maquínica das intensidades. Nessa mistura de heterogeneos, forma e força se afetam e dançam a melodia do extremo, como uma nova suavidade lançada ao acaso e tornada método de conhecer e inventar o mundo em sua potencia de expressao e desenlace.   
O humor, a farsa, o non-sense, o absurdo e o paradoxo permitem, pela arte, liberar os simulacros do grave jugo da representaçao: "A obra de arte abandona o domínio da representaçao para tornar-se 'experiencia', empirismo transcendental ou ciencia do sensível" (DELEUZE, 1988, p. 107). Um jogo ardiloso invade a certeza e provoca a desmesura, a degradaçao da verdade, aberta a novas possibilidades e açoes. Nao representamos, pois, o dito, mas envolvemos o nao-dito ao eterno retorno de suas reverberaçoes e promiscuidades.
Com a afirmaçao poética do desmedido, afirmamos uma política delirante onde o paradoxo dá o tom para a orgia sensível que se instaura. Importa, em nossa operaçao, sua poética efetuaçao poética, o erigir modos impuros, tomados do absurdo espantoso que prove o tônus do poeta: é girando manco, bebado em meio a dança, que se instaura a metaestabilidade gonza que vai sempre de viés cerzindo um tracejado incerto. Afirmar a poesia e o risco: "Como diz Nietzsche, entre os justos a afirmaçao é primeira, [...] Eis porque as verdadeiras revoluçoes tem também um ar de festa" (DELEUZE, 1988, p.424). Pensar da poesia que problematiza em virtualizaçoes a ultrapassagem da constituiçao de descriçoes e reduçoes formalistas: pensar de poesia que faz misturas alquímicas e aguarda a poçao explodir em suas maos.
Nao se trata da ciencia da arte nem da arte da ciencia, falamos antes de um híbrido formado na junçao escancarada destes: arte e ciencia, ciencia-arte, arte-ciencia. Poderíamos inclusive abandonar de uma vez por todas a partícula ciencia desta equaçao e dá-la sem ciúme, em baixela de prata adornada aos que buscam sempre serem seus únicos donos. Esta linha de tecnologia do sensível (FONSECA; COSTA; KIRST, 2008) que se afirma entre a ciencia e a arte nao se apresentam como uma novidade em nosso campo, pois diversas sao as experimentaçoes que já aconteceram neste sentido: o olho câmera de Dziga Vertov, a cartografia delirante da Roma de Fellini, as instalaçoes fotográficas entre os Lapoes de Jorma Puranen, os estudos do movimento anamorfomáticos de Marey, as projeçoes subversivas de Shimon Attie em Berlin. Tomar ao som, a imagem, ao corpo, a escrita, entre outras açoes, enquanto possibilidade de expressao de mundos, levando em consideraçao suas inevitáveis inteligibilidade sensível e sensível inteligibilidade: ponto brumoso do paradoxo. "A manifestaçao da filosofia nao é o bom senso, mas o paradoxo" (DELEUZE, 1988, p.364).
Nesse limiar, o paradoxo corre nos dois sentidos, ao mesmo tempo, entre o tempo de cronos, cronologia linear das coisas, e o tempo de Aion, Acontecimento das virtualidades em composiçao. Assim, fazemos o método trabalhar, na direçao da coexistencia entre arte e conhecimento, ou entre linguagem e nao-senso. Este, para Deleuze (1998), nao implica a ausencia de sentido, mas diz o seu próprio sentido, na composiçao de um murmúrio híbrido, aberto aos acasos que se envolvem e produzem novas rupturas e reverberaçoes. O elemento paradoxal torna-se nao-senso e envolve a bifurcaçao das séries, envoltas em complexidades e diferenças. Nao buscamos a clareza das coisas, mas a sua perpétua bifurcaçao e o embaralhamento de sentidos. Dispomos de um pequeno saber, envolto num emaranhado de virtualidades e desconhecimentos, que o interpelam e o desvirtuam de antigas argumentaçoes.      
Nesse trânsito complexo, os dados sao relançados as suas virtualidades, num tempo que se reinventa e se torna nova dobra do mundo. Compomos, nao a escrita de um presente, mas algo entre o que acabou de se passar, ou que vai se passar, tal qual um tempo rachado e cindido em presentes múltiplos, conectados por um passado-futuro por vir. Traçamos a arte dos recomeços, ou a poética das expressoes envoltas em alegrias e mistérios. Tentamos viver, entao, a aventura das escritas maquínicas, revestidas de estórias embrulhadas. E, ao fazer reverberar o verbo e a sintaxe, jogamos o sentido numa trama de coexistencias nômades que se contagiam e revelam a força das superfícies misturadas.
Segundo Deleuze (2006a), propomos uma linguagem em superfície que doa sentidos e mexe numa fronteira caótica, entre as proposiçoes e as coisas. Assim, um sentido é produzido na circulaçao entre séries singulares e heterogeneas, que se subdividem ao infinito e se enlaçam e novas possibilidades e perpetuaçoes. Entre a heterogenese das séries, pode nascer um novo recomeço, uma espécie de ética dos Acontecimentos que se envolve ao corpo do verbo e doa novo ritmo as palavras.
Da poética, a sintaxe se bifurca em proliferaçoes absurdas e beira as bordas de um sentido inventado e relançado a sua embriaguez. Assim, corpo e verbo fazem dobra, e convocam o delírio a transbordar os limites da linguagem e a atormentar os infinitivos com novas idéias e proliferaçoes. Nesse espirituoso murmúrio de indagaçoes, cartografamos o intempestivo jogo de afetos e produçoes desejantes, que fazem sentido na corda bamba entre o pensamento e a invençao: "No começo era o verbo, só depois é que veio o delírio do verbo. [...] A criança nao sabe que o verbo escutar nao funciona para cor, mas para som. Entao se a criança muda a funçao de um verbo, ele delira" (BARROS, 1998a, p.25)

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Estilísticas: a ontologia estética dos modos

As operaçoes poéticas inserem o absurdo onde a linearidade e a conexao lógica imediata regiam. Fazem vibrar uma onda anômala de contágio que agita as singularidades nômades. Tal agitaçao poética das singularidades faz ressoar no impessoal uma melodia bastarda, dissonante perante o cânone da harmonia, levando ao corpo vibraçoes intempestivas que abrem novos possíveis. Vemos, entao, o surgimento de séries rebeldes, séries que se afirmam para além e aquém de modelos, sejam eles uma idéia inteligível ou mesmo uma coisa como referente substancial. A expressao e o sentido nao mais se reduzem a uma representaçao atrelada ao referente primeiro através do cordao razoável da verossimilhança. Adquirindo por si o status de ser, a partir de suas açoes no mundo, subvertem a própria noçao de mundo, produzindo outro pensamento que macula a natureza estável de um modo pensado pela forma e substâncias com a introduçao da paradoxalidade imanente: "Nao é próprio do simulacro ser uma cópia, mas reverter todas as cópias, revertendo também os modelos: todo pensamento torna-se uma agressao" (DELEUZE, 1988, p.17).

Assim, nao há o ponto de origem, do qual a expressao seria serva, que sirva de baliza ao expurgo dos bastardos e sua degradada relaçao de parentesco com a ontologia: o eterno retorno opera a dissoluçao da origem e do original, instituindo uma sucessao ilimitada de cópias, tudo retorna como cópia de si, aquém e além de modelos representativos e identitários. "Cada coisa, animal ou ser é levado ao estado de simulacro [...]" (DELEUZE, 1988, p.122). Tudo se tornou simulacro, e o simulacro nao consiste na reproduçao, na imitaçao de um modelo, mas sim, no próprio ato de reversao que subverte esta hierarquia binária: diluindo a oposiçao entre cópia e original, modelo e imitaçao, expressao e referente, etc.

Os simulacros ultrapassam a dualidade das proposiçoes entre designaçao de coisas e expressao de sentido, acolhendo aos efeitos, aos sentidos, as açoes e as expressoes, como se mais que coisas fossem. Colocamo-nos, entao, para além da reificaçao do ser em forma ou substância, posto que estes se dissolvem nos fluxos: a própria expressao já é. O problema da ausencia de designaçao, de referente no mundo das coisas, representaçoes ou modelos inteligíveis, nao é mais uma barreira ao simulacro. Importa sim seus efeitos, suas expressoes: sua potencia poética é sua força poiética e vice-versa 4. "Como diz Bergson, nao vamos dos sons as imagens e das imagens ao sentido: instalamo-nos logo de saída em pleno sentido" (DELEUZE, 2006a, p.31). Assim, o(a) fundamento da expressao nao se encontra na ponta de um dedo infantil a requerer e inquirir o sentido de um seio. Posto que nem o dedo é ponta, nem o seio coisa, mas ambos sao na expressao de um apontar, sem origem primeira ou fim último que lhes de os contornos do fundamento da designaçao.

Outra natureza é aí constituída, a ontologia se descola da substância e da forma compreendidas como causas do ser que produz as expressoes. Tudo se torna efeito, em um mundo de açoes que se relacionam sem a necessidade de um agente imóvel: "Portanto, atrás das máscaras há ainda máscaras" (DELEUZE, 1988, p.179). O disfarce e as máscaras nada mais sao do que operaçoes de deslocamento virtual entre as séries. Assim sendo, sao as máscaras e os disfarces que dao corpo as expressividades dos problemas. É o problemático e a imanencia que operam a univocidade e a contemporaneidade das séries divergentes, já que estas tem ao caos como único ponto de "convergencia original": tornando inviável a diferenciaçao entre original e cópia. É o eterno retorno que opera o fundo sem fundo, o a-fundamento destas séries divergentes, onde nao é o mesmo que retorna, mas sim o distinto, a diferença: a única constante é de variaçao.

A passagem do pseudo a superfície torna-o nao mais um ser acanhado afeito aos cantos onde a luz da verdade e o chinelo do juízo se fazem ausentes; antes, perde o caráter de pecado e o simulacro passa a ser o seu efeito, a açao que provoca e constitui as superfícies da vida: a potencia do falso é seu efeito. Tomado como açao, efeito, expressao, nao há mais cobrança de coerencia interna, mas sim atençao as relaçoes que constitui em seus agenciamentos: os estilos que cria em sua trajetória. Quando do pecado original, quando o homem abandonou a divindade do verbo e abraçou a carne animal e suas vibraçoes desumanas, quando decaímos em um simulacro de Deus, restando apenas sua imagem e nao sua semelhança tornamo-nos simulacros e, a partir disso, nao importou mais a nossa verdade essencial, mas sim o estilo, a retórica de nossa expressividade existencial. "Tornamo-nos simulacros, perdemos a existencia moral para entrarmos na existencia estética" (DELEUZE, 2006a, p.263). É exatamente esta natureza estética do simulacro que assegura aqui a concepçao do mundo a partir da estética: a este mundo cabe investigar e intervir com os operadores poéticos, questionando e criando retóricas existenciais, estilísticas do ser.

Nessa trama, o mundo se faz profano e mundano, rodeado de vazios e proliferaçoes. O nao-senso invade o sentido e provoca insanidades lingüísticas, rodeadas de estilo e vizinhança estética. Em suas rachaduras, podemos supor um movimento de contemplaçao inventiva, no momento em que a degradaçao do degradado supoe uma alteraçao menor, um pequeno simulacro, tal qual uma molécula transmutada em nova expressividade. Operamos, entao, com o mapeamento das fissuras e suas chances de irradiaçao de diferenças.

Dessa forma, a repetiçao na arte nao é a cópia da vida, a arte nao imita a vida e vice-versa, a arte desloca a substância fluída da vida, problematiza-a, apresentando-se nao como pretendente de suas verdades, mas antes se avivando arte e artificializando-se vida, acentuando na vida a vertigem dos simulacros.

Isto porque nao há problema estético a nao ser o da inserçao da arte na vida cotidiana. Quanto mais nossa vida parece standartizada [...], mais deve a arte ligar-se a ela e dela arrancar esta pequena diferença. (DELEUZE, 1988, p.460)

Assim, vida e estética podem se imbricar, num entrelaçamento de heterogeneos que supoe o plano do inteligível e do sensível em diferença e conexao recíproca, como assevera Barros (1998b, p. 81) "Pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir".

Conforme Deleuze (2006b), podemos pensar a dramatizaçao como um método. Ela se faz por meio de dinamismos espaço-temporais, que supoem um movimento forçado, em direçao a um sujeito larvar, a um campo de individuaçao e de séries de diferenças intensivas. Aquilo que força supoe um duplo envolvimento entre corpos e singularidades, que se enredam e provocam um encontro entre diferenças e intensidades. Trata-se, pois, de um estranho teatro feito de determinaçoes puras, que agitam espaço e tempo, agem sobre a alma, tem larvas por atores. Nesse ponto, um modo de ser larvar recoloca o ser em contato com o rastejar de sua existencia, em direçao a novos percalços e virtualidades. A larva carrega, em si, a potencia embrionária da criaçao de novos possíveis relançados a uma estética da existencia. Em meio a um movimento tomado por uma lentidao plástica, um modo larvar se mistura com o meio e se associa a novas expressividades.

Deparamo-nos com modos larvares e fugazes que escorregam de si e serpenteiam frente ao inacabamento das coisas, ao suportar vazios e dramas. Para Deleuze (2006b), é o conhecimento científico, o sonho e também as coisas em si que dramatizam. Num jogo caótico de afetos e perceptos, o virtual coexiste ao atual e supoe corpos transmutados num porvir de novos enredos e inquietaçoes. O conceito diz de si e, ao mesmo tempo, desdiz a sua história, rompe com a significaçao que já nao lhe serve. Onde se quebram, pois, os limites de uma ciencia que desdenha a própria verdade e se torna moribunda de generalizaçoes, uma vez que acessa um repertório de novos possíveis e se avizinha com estéticas e tecnologias de si?

Assim, a um determinado conceito, podemos procurar e compor o drama a que ele corresponde. A coexistencia do atual e do virtual implicam uma melodia cósmica que faz o método tremer as bases e brincar com as próprias replicaçoes. Um plano caótico de singularidades pré-individuais invade os modos de conhecer, bem como de se tornar sujeito. Abrimos o abstrato e o religamos com as concretudes construídas, num ímpeto infame por novos ritmos para o pensamento. Fazemos tremer o sentido e o sensível, numa espécie de zona intermediária entre afeto e política cognitiva inventiva.

Abre-se agora a possibilidade de debruçar-se sobre o usual objeto da psicologia social de outra maneira. O desafio consiste em perceber no cotidiano o costume, nao como as regras formais que balizam o movimento das formigas em seu dia-a-dia, mas mirar o costume como a estilística da fantasia criada neste carnaval diário e vulgar em sua imanencia e comunalidade. Trata-se, entao, de mapear o jogo de simulaçao e aventura que atravessa o hábito e o torna vítima contemplativa de sua própria transfiguraçao. Com isso, o comum, o infame, o que se repete, carrega também a potencia de variaçao e recomeço, origem segunda de uma diferença inventada e vivida de incontáveis modos.

Em um método psi que desliza dos procedimentos certeiros e se enreda no nao saber e no desencantamento, a dúvida ganha consistencia e reverberaçao. O objeto se torna abandonado de seus mundos, entregue ao acaso e também ao movimento forçado que busca uma política larvar de cogniçao e maquinaçao da vida. E, em meio a entrega de si, o corpo sussurra palavras recriadas e experimenta vazios que o tiram de antigas lamentaçoes. O expresso nao se esconde na profundidade, mas se faz a partir de um deslizamento contínuo e imanente a vida. Ele desliza na movimentaçao de si, absorto em riscos e novas tentativas de duplicar imagens e proposiçoes. Por isso, a linguagem atual também é povoada por seus dramas, por um plano de virtualidades e singularidades impessoais, que podem desdobrar, a qualquer momento, o sentido e seus múltiplos.

Possibilitar, por exemplo, problematizar o balé dos movimentos rotineiros e compreender sua singular aventura de leveza, no lugar de somente imprimir-lhes seus verdadeiros sentidos ocultos nas mínimas minúcias geométricas cotidianas. Nesse ponto, o cotidiano dança diante dos olhos de um transeunte distraído, ao inventar piruetas carregadas de orgia e excentricidade. Ao mesmo tempo, a leveza consiste em fazer o problemático criar novos passos, entrelaçados com ritmos e melodias inventadas. O método pode desejar a problemática coreografia de possíveis que se recria a cada ensaio, aberta a uma suposta expressao intensiva.   

Desse modo, esperamos mirar suas imagens poéticas sem detratá-las como meras miragens esmerilhadas por um prestidigitador, apenas seguir as linhas que compoem seus turbilhoes, o cerzir de suas relaçoes. As paisagens configuram-se como resoluçoes dos agenciamentos territoriais. Paisagens existenciais sao os modos de ser da subjetividade, problematizados exatamente no ponto onde indiferenciam o olhar e o que é visto. Olhar e paisagem formam um ponto cego em seu encontro, no qual ambos se criam.

Nesse enlace paradoxal, a poética se imprime, mas também exprime suas reviravoltas e perplexidades. O indivíduo nao se compoe em uma relaçao figura e fundo com a paisagem, mas constitui-se como puro efeito da própria paisagem, produto e produtor de atualizaçoes de sua imanencia. Em suma, busca-se pensar com a poética, em última instância, como o plano da vida se cria e a potencia em dispersao virótica de variaçao entre as singularidades constitui as estilísticas: variaçoes de variaçoes.

A maior riqueza do homem é a sua incompletude. 
Nesse ponto sou abastado. 
Palavras que me aceitam como eu sou - eu nao aceito. 
Nao agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pao as 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que ve a uva etc. etc. 
Perdoai. 
Mas eu preciso ser Outros. 
Eu penso renovar o homem usando borboletas 

(Manuel de Barros, 1998b, p.79).