sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Kafka e o tribunal invisível



No dia 03 de julho de 1883 nasceu Franz Kafka em Praga, um dos escritores que mais influência exerceu na literatura moderna, especialmente na concepção de mundos que são alegorias de outros mundos e na consciência do absurdo. Sem dúvida, um dos escritores que mais transformaram a consciência literária no último século. Este arisco e lacônico escritor de origem judaica se destacou como ninguém por haver cravado na mente popular mundial um adjetivo derivado do seu próprio nome: o ''KAFKIANO'', usado para descrever, paradoxalmente, uma sensação quase indescritível, que beira o absurdo e perturbador mas que aparece também para referir-se a um sentido metafísico oculto, do qual nossas vidas são uma sobrecarregada alegoria.

O PROCESSO e O CASTELO são suas principais obras e compartilham uma temática fundamental, como escreve Roberto Calasso em seu livro K.:

 
O Processo e O Castelo são histórias nas quais se trata de concluir uma diligência investigativa: desfazer-se de um processo penal e confirmar uma nomeação. Tudo sempre gira em torno de uma eleição, o mistério da eleição, sua obscuridade impenetrável. em O Castelo, K. deseja a eleição e isto complica infinitamente toda a ação. Em O Processo, Josef K. quer se livrar da eleição (processo ou inquérito de que está sendo objeto) e isto complica igualmente toda a ação. Ser escolhido, eleito, absolvido ou condenado: modalidades do mesmo procedimento... O eleito e o condenado são os escolhidos, aqueles que são separados do rebanho, da multidão, de entre todos. Este isolamento é a origem da angustia (kafkiana) que constrange todo o romance.

Este particular entendimento de um sistema metafísico que parece reger a realidade e a moralidade, penetrou na mente de Kafka, ao que parece em dezembro de 1910, em ''um período sombrio e estéril'' no qual, sem poder escrever, Kafka registrou ''Ouço permanentemente uma invocação''. ''Oh, se tu viesse, tribunal invisível!''. Aqui talvez esteja o momento chave da enigmática existência literária de Franz Kafka. Explica Calasso:

O mesmo Kafka, quando em sua desolação se permitiu invocar uma entidade denominada ''Tribunal Invisível'', não pedia outra coisa senão colocar-se nas mãos do tribunal e do Castelo, inclusive sabendo o que lhe esperava. Mas suspeitava que apenas mediante aqueles tormentos alcançaria a vida que de outra forma lhe seria negada.

Elias Canetti observa que ''Kafka é, entre todos os escritores, o maior especialista em 'poder', em ''potência''. Digo no poder indeterminado e ilimitado, que abarca todas as coisas. Sua máxima virtude como escritor é representar metaforicamente essa potência ainda não dissociada, inabarcável, em uma estrutura de poder com a qual podemos nos relacionar. Um tribunal e um castelo que se parecem suficientemente com nossos tribunais e nossos castelos para que possamos vincula-los com uma narrativa existencialista do poder mas diferem suficientemente para nos mostrar o enigma dessa potência celeste incompreensível (aquela da burocracia metafísica, dos Arcontes, do ''Soberano Saturnal'', como diz Calasso).

Como regalo adicional, Calasso, o grande escritor do ocultismo na literatura clássica, identifica uma jóia literária na qual Kafka faz alusão á magia, á qual concebe essencialmente como uma linguagem que opera sobre o mundo:
 

''É perfeitamente imaginável que a magnificência da vida está disposta, sempre em toda plenitude, em torno de cada um, mas coberta por um véu, nas profundezas, invisível, muito longínqua. Entretanto está ali, sem hostilidade, sem desgosto, sem surdez, vem até ti se você souber chamá-la pela palavra correta, pela modulação correta do seu ''nome''.
 
 
Post Scriptum
 
 
Uma leitura metafísica da obra de Franz Kafka, saída da pena de Roberto Calasso, permite trazer paralelos entre as modernas concepções da realidade como uma ilusão e com o antigo gnostiscismo que sugere que por trás dessa ilusão jazz o Paraíso.
 

Antes que em The Matrix ou que nos mundos simulacros de Phillip K. Dick, em Franz Kafka já havia um inexpugnável sistema metafórico para representar a ilusão da realidade - o sistema que controla essa ilusão. Ele chamou de O CASTELO e O TRIBUNAL, com algumas diferenças, mas basicamente significando um edifício metafísico de um impenetrável algoritmo no qual se computam-registram todas as nossas ações (as atas do karma) e que se derrama sobre a realidade original até substituí-la (''o tribunal invisível se estende sobre todas as coisas'', escreve Roberto Calasso sobre Kafka). Este edifício é a forma que toma o vazio, que é potência infinita, diante da mente: se revela como uma construção, com uma série de leis e representantes particulares, e ao mesmo tempo permanece sempre misterioso e impessoal. Em O PROCESSO e em O CASTELO, tudo faz alusão, mas nada expressa diretamente, como se Kafka estivesse possuído por algo que ele mesmo desconhece. K, o agrimensor, se vê impelido por uma força misteriosa ao penetrar os segredos do Castelo, mas quando estes lhe vão ser revelados cai também vítima de um sonho lânguido - o Castelo se auto-regula desta forma, justamente não pode permitir revelar que seu poder é um sonho - ''um sonho muito ramificado que contém ao mesmo tempo mil correlações que se tornam claras de umgolpe'' - Este momento de claridade, de transparência diamantina, é aquele que escapa, invadido pelo mesmo sonho.

''O Castelo se deixa tocar, mas só por quem está profundamente imerso no sonho provocado pela obsessiva busca deum contato com o Castelo'', escreve Calasso sobre o episódio em que K. logra imiscuir-se na habitação de um dos funcionários do Castelo, de noite. Quando o secretário Burgel está por revelar-lhe pormenores do mistério cósmico do funcionamento do Castelo, K. cai presa de uma lombeira que impede seguir a conversação. ''Assim corrige o mundo seu próprio curso e conserva o equilibrio'', diz como em coro Burgel. Assim se mantém á salvo a realidade que jazz atrás dos muros do Castelo, com o sonho dos homens, e por isso o MÁXIMO SÍMBOLO da VONTADE ESPIRITUAL é o DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA. Um único homem que alcança DESPERTAR, Cristo, Buda, Neo, K., ameaça desmoronar todaa estrutura do Castelo de um só golpe.

Ao ler a obra de Kafka suspeita-se que a estranha natureza das coisas e dos personagens que aí desfilam, não é apenas uma antecipação absurda do surrealismo. Tudo parece nos colocar ante uma íntima atração desconhecida - e incognoscível. V´rios autores já ofereceram uma leitura metafísica da obra de Kafka, mas a sutil exegese de Calasso, em seu livro K., sempre aberta a novos sendeiros de interpretação, é um lento sequestro na direção do arcano: esta suspeita que uma vez que assoma na alma humana se torna inextinguível, de que nosso mundo e nossa realidade está sendo controlada por entidades superiores e apabullantes que se regem conforme uma lei que nos é inascessível. O mesmo Kafka escreveu sobre o Castelo 'é opressivo como tudo que é espiritualmente superior''.

Entrar em contato com os arcontes, com os Senhores do Castelo, com os agentes da MATRIX, é um processo tortuoso, mas necessário para se conhecer diretamente o DIVINO, aquilo que jazz por trás do véu epifânico, aquilo que estremece a existência como uma chama trêmula. Kafka ''não pedia outra coisa senão colocar-se nas mãos do Tribunal e do Castelo, inclusive sabendo o que o esperava. Mas suspeitava que apenas mediante aqueles tormentos alcançaria a vida secreta que lhe seria negada de outro modo''. A diferença de um personagem como Neo, que queria escapar da Matrix, Kafka queria entrar nela, vislumbrar seus código (atas) e ser julgado, buscando aquilo que só sucede nas lendas: a absolvição autêntica, que produz o aniquilamento do expediente, o fim do Karma e da roda dos nascimentos intermináveis.

Os Senhores do Castelo são como as deidades, ou como os demiurgos que se convertem no mundo que habitamos. "Klamm é uma emanação'', diz Calasso. ''Tu vês a Klamm em todas as partes'', diz K. á Frida. Também o agente Smith em Matrix se multiplica e aprece ubicuamente (em vários lugares). Em The Three Stigmata of Palmer Eldritch, de Phillip K. Dick, o Arconte, Palmer Eldritch viaja desde os planetas exteriores para mimetizar todo o espaço, para construir um labirinto de um encantamento que seduz em seu fulgor holográfico para capturar, o stereoma dos gnósticos, uma espécie de fronteira virtual entre o mundo divino e o mundo terrestre.

''O Castelo está impregnado de toda vida psíquica precedente'', diz Calasso, como se este fosse o espelhismo que surge da repetição da memória, do feitiço do passado. Isto recorda a Prisão de Ferro Negro, a forma como Phillip K. Dick chamou esta realidade ilusória, que segundo ele era um simulacro: o tempo se havia detido na época dos romanos - ilusoriamente percebemos uma época moderna sob o jugo das ''forças demiurgicas do mundo da tirania política e do controle social opressivo''. O mundo autênico jaz velado, detrás dessa ''Prisão de Ferro Negro'', atrás do Castelo ou dentro da Lei que se oferece como uma parábola tantálica a Josef K.

Segundo disse o pintor Titorelli a Josef K. , existem três tipos de absolvições num processo jurídico : ''a absolvição autêntica, a absolvição aparente e a postergação indefinida''. Titorelli diz a Josef K. que não conhece nenhum caso de ''absolvição autêntica'' ainda que deva ter existido alguma - isto no plano da lenda, do mito, dos deuses. Diz Calasso sobre as lendas ''poderiam tbm ser o único vestígio supervivente das sentenças finais do tribunal. O único vestígio de algo ''autêntico'' em um mundo que está exilado do autêntico, da realidade, tal como K. o está do ar''. É curioso que o mitológico seja autêntico, como se se tratasse de um substrato do qual nossa realidade é somente uma projeção ou uma cópia que vai se desgastando, até o ponto em que, como o mesmo Josef K. diz ''a mentira se converte na ordem do mundo''. Apenas neste plano legendário é possível a absolvição autêntica, e esta absolvição autêntica significa a imediata extinção da ''ata'' (do Karma), é por isso que não se conhecem casos públicos nos quais haja sucedido. Algo que me recorda o que disse Gurdjieff, que apenas o indívíduo, e não a humanidade, pode evoluir e deixar de ser ''alimento da Lua''
 
 
 
 

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