sábado, 28 de dezembro de 2013

Hunter S. Thompson e o jornalismo gonzo




A Penguin compilou os melhores artigos de Hunter S. Thompson na "Rolling Stone". Um olhar cínico e uma escrita furiosa, um tempo ausente do jornalismo e da política de hoje

Hunter S. Thompson ainda não tinha inventado a sua própria personagem no jornalismo norte-americano quando escreveu "O Diário a Rum", obra de ficção inspirada nos seus inícios em Porto Rico e agora adaptada ao cinema por Bruce Robinson ("Withnail e Eu", 1987). Thompson era, no início dos anos 60, um romancista frustrado que reescrevia "O Grande Gatsby" na sua máquina de escrever, procurando um ritmo que apenas ganhou mais tarde em publicações periódicas ao relatar a fúria das divisões em que os EUA cairiam na década seguinte.


Regressando ao seu país, mais tarde, para escrever sobre os Hell's Angels ("Hell's Angels", 1966), atirou-se aos mitos fabricados da gangue mais temida das estradas americanas. O reconhecimento do livro colocou-o no centro de uma nova forma de olhar para as comunidades dos EUA. Mas seria na revista "Rolling Stone", a partir de 1970, que encontraria a plataforma ideal para a experimentação da sua escrita, recolhendo impressões, e colocando a sua própria figura no centro dos textos sobre acontecimentos sociais e políticos. Esses artigos encontram-se agora reunidos em "Fear and Loathing at Rolling Stone: The Essential Writing of Hunter S. Thompson" (ed. Allen Lane, Penguin).



Teresa Botelho, especialista em estudos americanos da Universidade Nova de Lisboa, refere que Hunter S. Thompson "está dentro do ‘novo jornalismo' que vê a fronteira entre ficção e jornalismo objectivo esboroar-se." A literatura norte-americana via, então, autores de ficção inspirarem-se em técnicas do jornalismo, como Truman Capote ("A Sangue Frio", 1965) ou Norman Mailer ("Os Exércitos da Noite", 1968). Thompson, à semelhança de Tom Wolfe ("The Electric Kool-Aid Acid Test", 1968), partiu para uma linguagem individual de ficção a partir das suas impressões sobre a realidade, criando a sua estética: "Gonzo". "Há várias interpretações sobre o que Gonzo quer dizer, mas terá a ver com uma capacidade de difusão das percepções da realidade", diz Teresa Botelho.



Thompson, enquanto personagem dos seus próprios textos, oferecia uma impressão da realidade afectada, física e criativamente, pelo consumo de drogas. Mas seria ele a contribuir para criar uma instituição central da contracultura americana - a "Rolling Stone" - e fazer dele próprio uma das suas maiores figuras. "Ninguém comprava a ‘Rolling Stone' para saber o que acontecia, mas o que certas pessoas interpretavam a partir da realidade", explica Botelho. "E o ‘jornalismo'de Thompson era agressivo porque correspondia a um período agressivo."



"Fear and Loathing in Las Vegas" (1971), lançada originalmente em vários números da revista, seria a sua obra-mestre: relato alucinado de uma viagem a Las Vegas, desvirtuação suprema de um sonho americano que vê a estrada chegar ao fim, fechando uma ilusão aberta em "On The Road" (1957) de Jack Kerouac. Foi adaptado ao cinema em 1998, por Terry Gilliam, e com Johnny Deep como protagonista, em "Delírio em Las Vegas".



A ficção dos papéis políticos



Para Teresa Botelho, "Thompson vai à procura da derrapagem do sonho americano: ao fazer uma investigação das derrapagens políticas e sociais de um momento específico, olha para um período em que as clivagens entre as promessas e as realidades se tornaram transparentes." As divisões internas dos EUA, e a fúria do seu povo face ao cinismo em que o seu modo de vida caíra, formaram a escrita intempestiva de Thompson.



Mas o autor encontraria, na política e nas suas formas de representação, a suprema forma de ficção das relações do seu país, vendo na figura de Nixon, por sua vez, a personagem máxima da manipulação obscura do sonho americano. "Richard Nixon parece ter sido feito de encomenda para Hunter S. Thompson", afirma Botelho. "É um momento em que não só a sua personalidade é inescapável, mas em que a aparente derrocada do sonho e da unidade americana ocupa o centro das preocupações."




Depois de Las Vegas, Thompson instala-se em Washington D.C. para escrever sobre a campanha eleitoral de 1972. O resultado, e que ocupa boa parte da colectânea agora lançada, é considerado como um dos olhares mais originais e incisivos sobre a representação e o teatro da política americana: "Fear and Loathing on the Campaign Trail '72". "Thompson é particularmente talentoso na cobertura das campanhas presidenciais", afirma Botelho, "e talvez mais ninguém tenha usado uma abordagem tão irónica e desconstrutora dos seus rituais."



Em 1970, Thompson tinha sido candidato a um cargo de xerife no Colorado, desmistificando, pela sua campanha, a imagem estabelecida de um candidato, das suas propostas políticas, e dos estereótipos feitos do papel dos eleitores. Mas ao relatar a campanha democrata e republicana para a presidência de 1972 - que resultou numa esmagadora vitória de Nixon, pouco antes do escândalo de Watergate -, Thompson faria um retrato mordaz dos mecanismos do poder e dos discursos dos seus candidatos.



A sua atracção pela ficção reconheceria, aqui, um palco de narrativas e personagens feito à medida da ilusão de um país - uma política contaminada por "junkies políticos" e indivíduos distanciados da realidade, tal como um autor influenciado pelas suas próprias substâncias. Para Teresa Botelho, "foi um período de grande cepticismo: as divisões em relação à guerra do Vietnam; a desilusão com Nixon, que prometeu terminar com a guerra na campanha e demorou mais 5 anos a fazê-lo; e uma política externa despida dos discursos idealistas tradicionais, que culmina com a suprema arrogância de Nixon em dizer [sobre Watergate] que se é um Presidente que o faz, não é ilegal."




Hunter S. Thompson chegaria a inventar uma droga - "Ibogaine" - para explicar o comportamento errático de Edmund Muskie, candidato democrata que desperdiçou as suas hipóteses devido ao desconforto da sua postura anti-mediática. "Se nos colocarmos na posição de Muskie, vemos que está a ser ficcionalizado. Mas qualquer jornalista, hoje em dia, seria imediatamente despedido se inventasse um facto não existente sobre alguém." À ficção da política, Thompson respondia, portanto, com a ficção da escrita, colocando-se como um cientista político louco (ou "Dr. Thompson", como se apresentava) ao mesmo nível que os políticos que descrevia. Contudo, e após a retirada de cena de Nixon (com a sua demissão da Presidência em 1974), Thompson foi igualmente desaparecendo das páginas, regressando apenas, na "Rolling Stone", para encomendas cada vez mais espaçadas no tempo.




Em 2005, Hunter S. Thompson colocaria um termo à sua vida, pondo em prática a atracção pelo abismo que a sua escrita evidenciava e também se mostrara desiludido com o rumo do seu país, chegando mesmo, após a eleição de George W. Bush em 2000, a proclamar saudades do seu vilão Richard Nixon. Thompson via, assim, a decadência das formas de fazer política - ainda que corruptas -, hoje marcadas pela paródia mediática. "Só se escalpeliza o que tem densidade, e olhando para a campanha que decorre, damos por nós, tragicamente, com saudades de Nixon, um vilão com quem valia a pena esgrimir."



Segundo Botelho, "o facto de hoje não termos essa sofisticação sardónica e outros Hunter S. Thompson é também função dos objectos humanos que temos à nossa frente."





Mas se Medo e Delírio não foi um clássico nos cinemas, apesar de ser reconhecidamente um filme cult, o documentário Gonzo: The Life and Work of Dr. Hunter S. Thompson se saiu muito melhor. O documentário é um apanhado da vida de Thompson em vídeo. Mas diferente das outras duas aqui vemos tudo pelos olhos dos que presenciaram sua carreira. O documentário faz duas coisas muito bem: reúne um monte de gente importante que conheceu Thompson – tem até Jimmy Carter na jogada – e os coloca pra depor; e é também um resumo da trajetória política, social e cultural de uma América do Submundo, aquela que só é notícia quando explode e invade a elitista. É a América de Jack Kerouac, de Willian Burroughs, de Robert Crumb. E aqui em Gonzo, vemos as duas facetas desse país tão amado e odiado.


Johnny Depp volta ao mundo da contracultura de Thompson, narrando o documentário em momentos-chave da vida do jornalista. É justamente a entrada de Depp – ele e Thompson viraram amigos com as filmagens de Medo e Delírio – que possibilitou que o diretor Alex Gibney pudesse contar com gente importante dando depoimentos, como Jann Wenner (fundador e editor da Rolling Stone), Sonny Barger (todo-poderoso dos Hell’s Angels) e Ralph Steadman (ilustrador de diversas reportagens de Thompson), entre outros.


O problema é que com a morte de Thompson, ninguém mais estava disposto a depor. Somente com Depp – que bancou um milionário funeral de Thompson, que incluiu até a jogada das cinzas dele para o espaço – é que foi possível reunir depoimentos emocionados e de gente importante que estavam a frente da América no período em que Hunter mudou a cara do jornalismo dos EUA.

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