terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Nietzsche e Heráclito

Quando acompanhamos o pensamento de Nietzsche sobre os filósofos préplatônicos, como ele chama os pré-socráticos, percebemos, tanto quanto Paolo D’Iorio, o tom autobiográfico das suas considerações, sobretudo quando se trata de Heráclito.

O capítulo V de A filosofia na idade trágica dos gregos se inicia com a diferenciação entre as concepções sobre a existência de Heráclito e de Anaximandro. Nietzsche deixa claro que Heráclito contempla o devir enquanto a visão de Anaximandro é obscurecida pelo pressuposto moral de dois mundos, o do devir (da eterna expiação da culpa do existir) e do indeterminado (Ápeiron). Entre os filósofos gregos, Heráclito é talvez o único, para Nietzsche, a ter contemplado a existência tal qual é: domínio que "nada mostra de permanente, de indestrutível, nenhum baluarte no seu fluxo" (A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, § 5), por ser dotado da faculdade da intuição.

Compreender a intuição como modo por excelência de apreensão do fluxo incessante do vir-a-ser é aceitar, como seu meio mais apropriado de expressão, um discurso incompleto, truncado e enigmático. Através de seu estilo lacunar e obscuro, Heráclito diz o que se pode e como se pode dizer para os que podem ouvir. A escrita de Heráclito aflui do limiar entre devir e representação e manifesta, então, a própria limitação do pensamento na incessante busca de apropriação do que é substancialmente fugaz e translúcido.

Nietzsche enaltece o estilo de Heráclito ao dizer que "... é provável que jamais um homem em tempo algum, tenha escrito de um modo mais claro e luminoso" (A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, § 7). Neste trecho, percebemos o quanto ele admirava no filósofo grego a concisão e a brevidade e não considerava absolutamente o caráter enigmático de sua escrita como conseqüência da intenção do autor de não ser preciso e claro.


A consciência da incapacidade de abarcar a existência, até mesmo pelo pensamento, é acompanhada de um profundo sentimento de inutilidade e de horror, que somente pode ser transfigurado em contemplação impassível e sublime por força de um empreendimento espiritual que, aliciando a capacidade intuitiva, configura em imagens reluzentes o curso fugidio da existência. Livre do assombro imediato, o pensamento é instigado a deixar ressoar os múltiplos sentidos que assolam as possibilidades infinitas anunciadas pelo devir.

Ao mesmo tempo que Nietzsche deixa claro que Heráclito expressa uma verdade incompreensível para os espíritos superficiais ao dizer "... que se trata de um estilo muito lacônico e, por isso, obscuro para leitores muito apressados" (A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, § 7), ele sustenta que para os espíritos à altura de Heráclito, ou seja, capazes da contemplação estética do devir, ressoa, das lacunas e obscuridades do pensamento do filósofo grego, um sentido fundamental. Na ausência desta grandeza espiritual resta somente o vazio, o qual os espíritos apressados e superficiais tendem a traduzir por falta de nitidez e confusão. Nietzsche assevera, através das palavras de um dos representantes do romantismo alemão, Jean Paul Richter, cuja escrita labiríntica e fragmentária é característica, que o estilo lacunar e breve tem ainda a utilidade fundamental de afastar as interpretações vulgares e medíocres (Nachgelassene Fragmente, p.832). Ora, Jean Paul é conhecido, sobretudo, como autor de obras de estilo romanesco. Porém Georges Gusdorf, se baseando no comentário de um crítico francês da obra de Jean Paul, esclarece que apesar das aparências Jean Paul procedeu pela via do fragmento para compor seus livros (Le romantisme II – L’homme et la nature, 2ª parte, cap. XII, p. 453). Para o leitor desatendo parece que os romances foram compostos de um único fôlego. Na realidade, eles constituem verdadeiros mosaicos, porquanto formados de pensamentos esparsos, elaborados em períodos diversos e antes da composição da obra.

Tomamos a liberdade de sustentar esta mesma opinião sobre a composição dos escritos de juventude de Nietzsche e, conseqüentemente, que sua admiração pelo estilo de Heráclito fundamenta não somente o gênero aforístico, adotado em suas obras posteriores, mas o próprio modo de composição dos escritos da época de A Filosofia na Idade Trágica dos gregos. Do período de juventude existem inúmeros fragmentos. Destes, alguns podem ser reduzidos a rabiscos, anotações ou esquemas de escritos contemporâneos e não chegam, muitas vezes, a formar uma frase e muito menos expressar um sentido. Outros manifestam um caráter auto-suficiente, aberto e prenhe de significações, consoante sua forma asistemática e enigmática. Alguns destes foram inseridos, sob sua forma original, em escritos mais completos. Por sua suficiência, eles guardam, de modo concentrado e profundo, o sentido em torno do qual gira todo parágrafo ou capítulo. Ademais, muitos escritos de Nietzsche não podem ser considerados análises elucidativas de conceitos ou sentidos chaves, mas são compostos de assertivas enigmáticas, que, apesar de sua independência e seu isolamento, se complementam mutuamente sem, no entanto, se elucidarem completamente. Podemos citar como exemplo "A Disputa de Homero", "O Estado Grego", textos contidos nos Cinco Prefácios para Cinco Livros não escritos. Ao defender este ponto de vista, concordamos com G. Gusdorf ao dizer que o aforismo caracteriza mais um gênero de pensamento do que um estilo de escrita. Mais precisamente, o modo, por excelência, de apreensão da verdade. Segundo Gusdorf o aforismo, com sua brevidade, sua dispersão, sua pluralidade de sentidos e seu mistério, manifesta os limites de apreensão da verdade por parte do pensamento e, ao mesmo tempo, então, a forma fugidia como a verdade se oferece à representação. Somos impelidos neste ponto a resgatar o que dissemos acima a partir das considerações de Nietzsche sobre o pensamento e a escrita de Heráclito, ou melhor, sobre seus próprios pensamentos e escrita.

 

 

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