quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Bruchstücke: a escrita fragmentária

É com a escrita em fragmentos que Novalis e os irmãos Schlegel inauguraram o romantismo alemão no primeiro número da revista Athenäeum, editada de 1798 a 1800. Este primeiro número foi reservado, pelos irmãos Schlegel, quase exclusivamente a Novalis. Novalis é o epíteto adotado por Friedrich Von Hardenberg neste primeiro número da revista Atheäeum, que também consiste praticamente em sua primeira publicação, com exceção da publicação de um poema de adolescência. Hardenberg não escolheu por acaso seu epíteto e o título de sua obra. "Novali" ou "Von Rode" foi um sobrenome adotado por antepassados de Hardenberg, do século XII, barões do burgo de Hardenberge, em alusão a sua propriedade Groszenrode, e remetem ao verbo alemão roden, que significa arrotear, desbravar, desmoitar e ao substantivo Rodeland, traduzido como arrotéia, noval, terra preparada para o primeiro cultivo. A partir da elucidação do sentido do epíteto Novalis não é difícil perceber a sua relação com o título da primeira obra de Hardenberg, Pólen (Blütenstaub). Em um fragmento de Pólen Novalis afirma: "Fragmentos desta espécie são sementes literárias" (Frag. 114, p. 92).

Com certeza não foi somente pelas afinidades de significado entre os termos Novalis e Pólen, que Friedrich Schlegel decidiu não excluir nenhum fragmento de Pólen, mas por vislumbrar uma unidade de sentido que dava a coletânea um valor de obra. Entretanto, esta percepção não impediu Schlegel de intervir na organização dos fragmentos ora juntando-os ou dividindo-os, com intenção de viabilizar plenamente o projeto original do pensador que escreve em fragmentos – não somente Novalis, mas ele próprio – de reservar para cada fragmento uma suficiência de significado; ora intercalando seus próprios fragmentos entre os de Novalis, conforme ele mesmo diz: "Vocês vêem que tomei dele com humildade. Encontrei também nos meus alguns que são suficientemente fluorescentes [Blüthe] para poder devolvê-los a ele, para que a ação recíproca fraternal fique bem perfeita" (Carta de de março de 1798 de Friedrich a Wilhelm Schlegel).

Notamos através destas palavras de Schlegel que ele talvez considerasse seus fragmentos como fluorescências, cujos sentidos remetiam e deixavam ressoar os sentidos das "sementes espalhadas" de Novalis.

Numa carta a August Coelistin Just de 26 de dezembro de 1798, Novalis chama seus fragmentos de "pensamentos soltos", e "começos de interessantes seqüências de pensamentos – textos para o pensar", e numa carta de 26 de dezembro de 1797 ele os chama Bruchstücke, palavra alemã equivalente a Fragmente de origem latina. Bruchstück pode ser traduzido por "pedaço", "fragmento". Imediatamente estes termos concernem ao caráter de algo que remete a uma totalidade, algo que é parte de um todo.

Ora, enquanto forma textual pode-se admitir dois tipos de fragmentos, o que anuncia e prepara uma obra propriamente dita, completa e acabada e que, então, se identifica ao esboço ou esquema de um escrito mais amplo, e outro, o fragmento como única forma possível de expressão de um sentido que não se manifesta ou se concede por completo, mas de relance e alusivamente. Nesta via, o fragmento é da mesma natureza que a unidade de sentido que ele expressa: aberto e inacabado.

A unidade de sentido que se condensa no fragmento remete a um fundo inacabado e incompleto que coincide com o fundo em contínuo devir do próprio homem, conforme afirma Novalis no fragmento número 318 de outra coletânea intitulada Fragmentos III: "Como fragmento o imperfeito aparece ainda do modo mais suportável – e portanto essa forma de comunicação é recomendável para aquilo que ainda não está pronto no todo – e no entanto tem alguns pontos de vista notáveis para dar". Novalis faz referência à capacidade própria do fragmento de encarnar a incompletude do que está em devir, representado na forma temporal do imperfeito, do que se iniciou e ainda não se concluiu, percebido em primeira instância e imediatamente como inacabamento daquele que pensa.

Para Novalis, pensar é, antes de tudo, caminhar, e o fragmento, enquanto expressão do pensar é, essencialmente, indicador de caminho. A relação com a verdade é uma busca, um caminhar, que tem na filosofia sua origem, seus princípios enquanto pistas e orientações de partida. Podemos então concluir que quando Novalis se refere aos seus breves escritos como "sementes literárias" (Pólen. Fragmento 114, p. 92), ele os vislumbra como germes de fluorescências anunciadas cuja eclosão demarca trilhas existenciais.

Nietzsche também escreve em fragmentos. Sua obra Humano demasiadamente Humano é a primeira no qual ele adota de modo inequívoco, consciente e estilizado o gênero fragmentário, e o assume como aforístico. Em uma outra obra (Genealogia da Moral, III, § 8), Nietzsche associa o estilo aforístico ao caráter essencialmente inacabado e aberto de um sentido veiculado pela escrita. O aforismo dispõe o pensamento à decifração ou a interpretação do sentido, que é sempre múltiplo e ressoa para além de seu comprometimento com um sistema ou uma época. Ele reivindica por sua própria natureza a arte da interpretação, que faz dele, na verdade, o ponto de partida de um sentido em devir. Segundo o dicionário Les notions philosophiques, o termo "aforismo" deriva do grego aphorismos, que significa "o que se separa do resto e determina". No mesmo verbete o dicionário se refere ao aforismo como "proposições de ordem prática que encerram um preceito geral, uma verdade do tipo fragmentário mais universal".

Mas o curioso é que o aforismo concerne à existência humana e aborda o homem sobretudo, por seu caráter enigmático. O pensamento é mobilizado para decifrar um sentido. Contudo, a interpretação, ao invés de ponto de chegada, é, na verdade, ponto de partida de múltiplos sentidos, revelando, então, sua natureza artística, inventiva e conformadora.

 

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